quarta-feira, 2 de julho de 2014

A ditadura da Partilha

Nada tenho contra o André Sousa Bessa. Muito pelo contrário. Foi meu colega de curso durante um par de anos e, apesar de ter perdido o contacto com ele após a faculdade, tenho do André a melhor das impressões. Tinha defeitos - um tripeiro dos sete costados... -, como todos, mas sempre vi nele uma pessoa com uma inteligência muito acima da média que coleccionava amigos por onde passava. Um atestado de qualidade se tal se pode dizer de uma pessoa. Não é por isso o André, cuja morte muito me impressionou, que me traz aqui, mas sim a reacção à sua morte. 

Nesta versão do mundo em que vivemos começa a reinar a ideia de que quanto mais privados são os momentos maior é a necessidade de os expor. A "Partilha", o acto de partilhar, virou uma obsessão nacional (mundial?) e nem mesmo o luto mais profundo, aquele que vai contra todas as leis da natureza, a luto pela morte de um filho foge a essa regra. Logo no dia seguinte à morte do André fomos brindados com uma reportagem na TVI da missa de corpo presente do André. Não se tratava das clássicas entrevistas à porta da igreja e pedir um testemunho (sempre elogioso, como as circunstâncias exigem) sobre o falecido. Não. Desta vez a reportagem foi sobre a missa em si. As câmaras estavam dentro da igreja a filmar a pobre da Judite de Sousa num estado de completo desnorte e desespero (só mesmo esse desnorte pode explicar que se autorize uma televisão a filmar uma cerimónia tão privada quanto esta). Dei por mim a mudar de canal por não querer violar a privacidade daquela gente. Senti-me ridículo mas fez-me pensar. Ao que isto chegou. São os supostos violadores da privacidade alheia que se vêem obrigados a defender essa mesma privacidade.

Depois vem o facebook e os incontáveis e intermináveis testemunhos de família, amigos, conhecidos, etc. É nestas alturas que eu me vejo a concordar com quem ainda não se rendeu às redes sociais. Sou um pró-facebook (o que quer que isso queira dizer) convicto e, embora seja mais um utilizador passivo do que propriamente um furioso dos "status updates" vejo nas redes sociais grandes vantagens, sendo a principal manter-nos em contacto, ainda que virtual, com as pessoas de quem gostamos mas que, por impossibilidade física e temporal, não vemos com a frequência que gostaríamos. Acaba por ser um sucedâneo do contacto físico por ridículo que isto possa soar (e soa).

Mas nestes momentos, o facebook mostra-nos a verdadeira bestialidade do ser humano. A quantidade de posts de gente que se quer associar ao luto de uma mãe é obscena. Dou por mim a questionar o propósito de cada poema ou montagem que os enlutados amigos publicam e não consigo encontrar nenhum que não seja egoísta/narcisista. Porque a Partilha (assim, com "P" maiúsculo porque se trata já de uma instituição) deveria ser isso mesmo. Deveria ser altruísta e generosa, por ambicionar que outra pessoa usufrua de algo que nós achamos que merece ser usufruído. Não é o caso neste tipo de posts. Aqui partilha-se o luto por surreal que isso possa parecer. Aqui partilha-se a morte. Aqui diz-se: "eu também o conhecia e estou muito triste". Aqui ambiciona-se a pena. Não se homenageia nem se conforta quem sofre (qualquer mensagem privada à mãe do André ou um ramos de flores cumpririam bastante melhor esse propósito). 

Há cerca de um ano, aquando da morte de alguém próximo de amigos meus e da subsequente avalanche de "Rest In Peaces" virtuais, um querido e saudoso amigo, no seu jeito de estar sempre contra a corrente, comentava comigo que esta "martirização social" o fascinava. Suponho que "fascínio" seja uma palavra com um significado suficientemente abrangente para incluir o que sinto nestes dias ao passear pelo facebook. Mas não seria seguramente a palavra que eu escolheria.

3 comentários:

Xadão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Xadão disse...

"eu também o conhecia e estou muito triste". Aqui ambiciona-se a pena.

Nem mais.

Queria acrescentar que há uns quantos, raros, posts que não me causam a estranheza sobre que falas. Há, na verdade, uns quantos posts do género em que se pode distinguir a simples pretensão altruísta da homenagem, da pretensão egoísta da partilha de um sentimento de tristeza.

Lembro-me de ontem ver os posts dos amigos deles com uma fotografia onde estavam as 200 pessoas que foram ao seu almoço após o enterro (calculo) e onde mostravam uma conta de comprimento interminável. A legenda de um dizia, "oh meu anormal, só tu para juntares tanta gente à tua volta".

Esse post não achei mal, gostei. Porque dirigido directamente ao próprio e porque uma homenagem puramente altruísta.

Enfim, são formas de fazer luto. Cada um tem as suas. Não condeno esta, mas não creio ser a minha.

Morales disse...

De acordo que há excepções. Confesso que ainda não vi nenhuma neste caso (não vi esse de que falas), mas admito que é possível assinalar a morte de alguém numa rede social homenageando-o apenas.

No fundo o que quero dizer com isto é que esta fixação em "partilhar" está a fazer de nós gente cada vez mais egoísta. Cada vez mais focada em nós e na percepção que se tem de nós. Quando a primeira coisa de que uma pessoa se lembra perante a morte de um amigo é ir ao facebook dizer "o X está a sentir-se triste" ou simplesmente pôr um fundo preto na foto de perfil, algo está mto mal.