quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Treehouse



Foram meses a fio. Meses. Feitos de dias e dias em que, em cada um, o pedido se repetia. E repetia.
Durante dias e dias, a frase, cada vez mais choramingada e arrastada, surgia assim que António punha um pé dentro de casa.
- Paizinho, quando é que nos constróis a casa na árvore?
Chegou a um ponto em que António já punha a chave à porta a cantar para si mesmo em voz de falsete. “Paizinho, quando é que nos constróis a casa na árvore?”. Impressionava-o a persistência. Aborrecia-o a insistência. Não gostava de dizer que não à menina dos seus olhos. A sua querida Beatriz.
Sentada no soalho de madeira do hall de entrada, de pernas cruzadas e a “Bi” debaixo do braço, a única filha de António esperava-o pacientemente. Diariamente. Com uma pergunta – sempre a mesma – na ponta da língua:
 - Paizinho, quando é que nos constróis a casa na árvore?
António não lhe dizia que não. Não gostava de dizer que não à sua querida Beatriz. Em vez disso, adiava a empreitada (para “quando estiver mais calor”), na esperança de que a ideia da casa na árvore - que em nada o agradava - lhe fugisse do pensamento, como o fizeram as ideias do pónei ou da casa de bonecas de três andares. Não fugiu.

- Pai, hoje está calor. É hoje que nos constróis a casa na árvore? Eu e a Bi já estamos à espera há muito tempo. E tu prometeste-nos!!
António não gostava de dizer que não à sua querida Beatriz...

O leve encolher de ombros da pequena Beatriz sempre que o pai dava uma martelada lá no alto do velho carvalho, não apagava o brilho nos seus olhos. Ora sentada no relvado, ora a andar em círculos à volta da árvore, Beatriz só tinha olhos para o seu pai e para a casa que, lentamente, ganhava forma. Até a "Bi", oferecida pelos pais no Natal e, desde então encaixada, noite e dia, entre o braço e as costelas de Beatriz, tinha sido temporariamente abandonada no relvado enquanto a dona inspeccionava as obras.
- Falta muito? E a escada? Quando é que montas a escada?

António não gostava da ideia. Desde que trepou pelo carvalho acima que sentia um vazio no peito para o qual não encontrava explicação. Afinal, estava a fazer aquilo que lhe dava mais prazer: uma vontade da sua querida Beatriz. Mas aquela sensação não o abandonou.
Estranhou. Mas prosseguiu.

...

Poucos meses passaram e, da escada, restam apenas bocados de madeira pregados ao tronco da árvore. Os degraus de madeira que antes formavam a escada para a casa de sonho da Beatriz, estão agora partidos em mil pedaços, espalhados pelo relvado. A casa, essa, continua lá em cima. Nela, apenas uma boneca. Abandonada.

Desde ontem que o vazio que António sentiu no peito tinha desaparecido. Desde ontem que no seu peito ardia uma fogueira de raiva, alimentada pelo pior dos combustíveis. A culpa. Apenas por breves segundos, essa dor que parece queimar por dentro, dá lugar à mais ténue das esperanças. Enquanto pousa uma margarida no pequeno retângulo de terra fresca à sua frente, António fecha os olhos e anseia pela chegada a casa. Quer acreditar que, quando chegar, a sua querida Beatriz estará, sentada, de pernas cruzadas, a olhar para a porta, pronta a perguntar:
- Paizinho, quando é que nos constróis a casa na árvores?
Mas a maldita casa estava construída.
Afinal, não gostava de dizer que não à sua querida Beatriz.

Talvez

“Inha” era uma dúvida em conflito consigo mesma. Fugir rumo ao esclarecimento era algo que muitas outras dúvidas já tinham tentado anteriormente sem qualquer sucesso. Sozinha, naquela solitária, naquela prisão, naquela ilha, Inha só pensava em atravessar aquele rio e chegar ao outro lado da margem onde poderia ser livre pela primeira vez.

Chamavam-lhe Inha devido à sua pequena dimensão. Inha era filha de uma dúvida que nunca se tinha esclarecido e, tal como todas as descendentes de dúvidas por esclarecer, Inha nascera na prisão onde todas as dúvidas do mundo foram condenadas a permanecer para todo o sempre. O mundo era governado por certezas. Umas eram filhas de outras certezas e outras eram dúvidas que acabaram por se esclarecer. O mundo estava, portanto, divido entre as certezas e as dúvidas. Dentro de cada classe havia vários tipos de certezas e de dúvidas. Nas certezas, muitas variações havia, como as constatações ou os factos e nas dúvidas era comum encontrarem-se questões ou enigmas. Todas eram diferentes, mas todas eram certezas ou dúvidas. Como as raças de cães, são muitas e com aspectos muitos diferentes, mas resultam todas no mesmo animal.

Inha fora encarcerada na prisão conhecida ao mundo como o “Cânone”. O Cânone fora construída numa pequena ilha fluvial, nos subúrbios da cidade grande, idealizada pelas certezas para acabarem com as dúvidas no mundo. O objectivo era isolar todas as dúvidas. O mundo tem medo das dúvidas e se não as pode esclarecer, prefere tentar esquecê-las, renegando-as e ostracizando-as nas paredes do esquecimento.

Apesar do seu aspecto frágil, Inha era um osso duro de roer. Pequena e esguia, Inha era também seca e tesa. Os seus pulsos finos escondiam duros punhos prontos a acertar quem lhe aparecesse no caminho. Determinada a procurar o seu esclarecimento, Inha sabia que teria de fazer tudo para sair daquela prisão. Abstraída do que seria o mundo lá fora, fora-lhe dito que o esclarecimento era um processo libertador onde cada dúvida poderia encontrar a sua resposta e, como que por metamorfose, se transformaria em certeza, podendo, finalmente, viver em paz com a sua consciência. Paz na consciência era o bem mais precioso do mundo. Inha só teria de encontrar a sua resposta.

Fora-lhe dito que a melhor maneira de fugir daquela prisão era através da ala das solitárias. Há duas semanas que Inha se encontrava na solitária. Propositadamente, Inha provocara uma violenta discussão na cantina e, como se pode imaginar, uma discussão onde não há respostas só acaba de uma maneira, com força física. Os guardas, ou “Dogmas” como as dúvidas lhes chamavam, interromperam a confusão, encontraram os culpados e remeteram-nos à solitária. Para todas as dúvidas condenadas ao isolamento, isso era um castigo duro, muito duro. Para Inha, tal poderia significar o caminho para a liberdade.

Após duas semanas a escavar, Inha decidira partir nessa noite, quando as luzes se fechassem e fosse feita a última contagem. Teria que entrar pelo buraco que escavara, mas deixar para trás a sua própria silhueta na cama. Enrolou vários lençóis e esforçou-se o máximo que pôde para disfarçar a ausência do seu corpo. Entrou no buraco e rastejou mais de cem metros pelo tubo de ventilação. Quando finalmente vislumbrou a luz da noite sorriu. Podia cheirar a liberdade. Mas sabia que o mais difícil ainda estava para vir. Não era o descampado que teria de percorrer sob o olhar atento dos focos dos guardas, a vedação que teria de saltar ou o arame farpado que teria de evitar que a preocupavam. O rio, aquele grosso fio de água, o derradeiro obstáculo, é que lhe ocupava as preocupações. Quando chegou à beira da água e viu a outra margem não pôde deixar de ponderar, ainda que por um segundo, se não seria melhor voltar para trás e confinar-se àquela que, afinal, sempre fora a sua realidade. Decidiu que não. Embora nunca uma outra dúvida tivesse conseguido atravessar o rio, Inha estava determinada a procurar a sua resposta ou a morrer na tentativa. O rio tinha correntes fortes, troncos, pedras e pontos de interrogação que facilmente poderiam arrastá-la até ao fundo. E Inha não sabia nadar. Nunca tinha precisado. Na verdade, nunca tivera hipótese de o experimentar sequer. O seu plano consistia em agarrar-se à corda que conseguira trazer consigo, atando-a à cintura e a um poste do lado da margem da prisão e dando folga à medida que avançasse. Não sabia nadar mas sabia esbracejar e com um pouco de sorte e muitos goles de água à mistura, podia ser que conseguisse. Atirou-se. Lutou o mais que pôde. Agarrou-se a um tronco, evitou as garras de um ponto de interrogação, avançou mais um pouco e mesmo quando estava quase a chegar à outra margem a corda rompe-se. O percurso torna-se mais difícil, não porque a corda lhe desse alguma vantagem física, mas porque lhe dava o descanso de uma nova tentativa. Inha era neste momento um trapezista sem rede. Ansiosa, dá um passo em falso e a corrente leva-a para não mais a trazer. Inha morre na busca de uma resposta. Como tantas outras dúvidas.

Moral da história:

Não há margem para dúvidas.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Num mundo ideal

Perdi o cartão Multibanco, o que é incómodo, uma vez que vou ter de pagar uns quantos euros por um novo.

Cogito.

Arroto, inadvertidamente e sem qualquer tipo de influência na presente lide.

Volto ao Multibanco.

(lobismos à parte) Se precisamos do pin para usar o cartão, não bastava termos só um pin e nenhum cartão?

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

"Só porque uma pessoa faz madeixas não pode ser guerreira?"


A pergunta é simples. Senão filosofica, pelo menos sintaticamente. A resposta também é, aparentemente, simples. Tentando olhar para a questão de forma tão objetiva quanto a própria nos permite e sem preconceitos (contra as madeixas, senão me engano) diria que a diferença de tons em partes delimitadas de cabelo e a coragem e convicção são condições de uma pessoa que não se excluem mutuamente. Tratando-se a pessoa de um homem, diria que aí o caso já fia mais fino. As madeixas num homem (assim como o hábito de comer scones ao pequeno-almoço btw) podem ter o condão de nos levar a crer que ali não estará um guerreiro. Aliás, o cadastro capilar de um homem deve estar inversamente indexado à sua capacidade de ser um guerreiro. Quanto mais histórias o cabelo de um homem tiver para contar, menos propensão esse homem terá para o confronto físico. Necessariamente. E nem precisamos de recorrer à mitologia de Sansão para o comprovar.

Aqui está apenas um exemplo de como Margarida Rebelo Pinto tem razões de queixa da sociedade portuguesa, por esta não lhe dar o crédito que, "Sei Lá!", ela merece. Aí está a prova de como Rebelo Pinto consegue pensar fora da caixa e levantar questões que nunca foram respondidas. E desenganem-se aqueles que acham que isso se deve ao facto de essas perguntas nunca terem sido perguntadas. A culpa é de quem nunca as perguntou. Não é, concerteza, da Margarida.

Só o pedantismo do povo português pode explicar que numa entrevista em que a Margarida levanta tantas questões novas - na verdadeira acepção da palavra - e se dá a conhecer como nunca antes, a única mensagem que tenha tido verdadeiro eco mediático tenha sido o já famoso "downsizing do lifestyle". É tacanho. É pequeno. E é, "Sei Lá!", injusto!
 
Conselho de amigo: Se um dia estiverem atrasados, muito atrasados, para chegar a algum sítio, mas ainda assim precisarem de tomar o pequeno almoço no café em baixo de casa porque não podem ir a guiar de estômago vazio, nunca peçam um scone.

Ainda que a senhora diga que o aquece ligeiramente, que lhe põe queijo e fiambre e que o barra com manteiga e que vocês peçam um Ucal para acompanhar, ainda assim, nunca peçam um scone.