segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Rose

Derrick Rose é um jovem de 25 anos, feitos no mês passado, natural de Chicago que joga basket na NBA para ganhar a vida. Foi a primeira escolha dos Chicago Bulls (e do draft, visto que os Bulls tinham a primeira escolha) no draft de 2008 e cedo demonstrou que seria uma referência para todos os fãs dos Bulls que, como eu, desde o final da década de 90 esperavam por um franchise player que voltasse a pôr os Bulls no topo da NBA. Rose cedo mostrou que, não só tinha tudo o que seria necessário do ponto de vista  técnico e físico, para ser esse jogador ansiado, como fê-lo como se nada fosse com ele, fazendo da discrição e da humildade palavras de uso obrigatório sempre que dele se fala. Nunca se lhe viu um grito mais enraivecido (perfeitamente justificável em determinadas ocasiões) de festejo depois de pontos conquistados, nem nunca se lhe conheceu qualquer gesto mais egocêntrico ou narcisista por se ter tornado na nova bandeira de Chicago e da NBA. A cara com que entra em campo é a mesma que apresenta quando sai depois de ter passado 48 minutos a abrir defesas ao meio e isso dá-lhe uma mística e uma aura que o torna especial. Parece que lida com a grandeza de forma natural e despretensiosa e isso, por si só, já me merece o mais profundo respeito. No ano de estreia, Rose, naturalmente, foi eleito o Rookie Of The Year, no ano seguinte foi selecionado para figurar no jogo All Star e no terceiro ano sagrou-se o mais novo MVP de sempre. Aos 22 anos. Aos 22 anos foda-se! Chicago já encomendava os foguetes com a perspectiva de voltar a dominar a NBA. Eu já esfregava as mãos de contente só com a ideia de voltar a ver os Bulls a varrerem. No primeiro jogo dos playoffs da época de 2011/2012 Rose apoia mal o pé e rebenta com os ligamentos cruzados do joelho esquerdo. Chicago chorou. Essa época morria nesse segundo e a época seguinte ficava seriamente comprometida já que o tempo da paragem numa lesão destas e num jogador que faz do contacto físico parte importante do seu jogo é sempre imprevisível. Perante isto Chicago preparou-se para mais um hiato de basket. A equipa daria o seu melhor enquanto ele estivesse fora, mas na certeza de que o melhor de uns Bulls sem Rose seria sempre insuficiente. Passaram os playoffs de 2011/2012, passou a fase regular de 2012/2013 e Rose foi dado como apto clinicamente, mesmo a tempo dos playoffs. Chicago acordou, mas logo adormeceu. No começo de todos os jogos de playoff dos Bulls, Rose integrava o aquecimento com os restantes colegas e, assim que terminava, ia para o balneário e já não voltava num exercício cujo único objetivo parecia ser deixar água na boca dos adeptos. Rose lá explicou depois de muitas críticas que para se estar recuperado é importante estar recuperado mentalmente também e ele queria ter a certeza que voltava bem e não tinha recaídas. Clubismos à parte, é no mínimo prudente que um gajo novo, com a carreira por fazer e a fortuna por receber, opte pelo caminho mais seguro. Tudo bem. O adepto, no final de contas, agradece. Entramos então nesta época, que se iniciou em Outubro. Rose mostrou-se em muito bom plano nos jogos de pré-época deixando um sorriso na boca daqueles que, 560 dias depois, voltaram a ver aqueles arranques que só ele consegue fazer, passando no meio de armários de 2 metros e 20 e sempre arranjando maneira de deixar a bola no aro. Para compensar o tempo perdido mostrava que as suas promessas de que tinha melhorado o seu tiro exterior (por ser a única coisa que podia treianr durante a lesão) até tinham algum fundamento. Mas a época não trouxe essa confirmação do regresso de Derrick Rose. Sim, estava a jogar, mas ainda era um Rose muito distante do verdadeiro Derrick Rose. Os arranques não saíam, o tiro exterior muito menos e os Bulls entraram com algumas derrotas inesperadas. Desde há duas semanas para cá as coisas pareciam estar-se a encaminhar. No fim de semana passado ganharam com autoridade aos Pacers (que contavam por vitórias todos os jogos até aí disputados) e seguiam já numa winning streak de 6 jogos. This is it! sussurravam a si mesmos os adeptos dos Bulls com as aparições fugazes do seu ídolo.

No sábado passado Derrick Rose numa jogada normal que nem era de ataque ao cesto deu um passo e o joelho direito cedeu. Outra vez. De onde estava já só saiu apoiado nos ombros dos médicos e do pavilhão só saiu de muletas. Foi operado há um par de horas e os Bulls anunciaram que falhará pelo menos esta época. Entre os 24 e os 26 anos Derrick Rose rebentou com os dois joelhos e foi sujeito a duas operações de reconstrução cuja fatura que deixam na longevidade de qualquer atleta é sempre alta. A carreira de Derrick Rose está agora em risco e isto é uma filha da putice tão grande que me apetece bater em alguém. Foi o que fiz. Bati no teclado.

Estou melhor por acaso. 

Estrugido

        Amanda era uma mulher forte. Não no sentido físico, mas interior. A sua infância fora marcada pela ausência dos pais, que morreram cedo, num desastre de carro. Fora criada por uma tia, viúva do mesmo desastre e com mais um filho da mesma idade de Amanda, a quem esta passou a chamar de irmão. A sua tia era lutadora e incutia nos miúdos esse espírito, mas nunca conseguira esquecer a angústia da sua sorte e, embora tentasse esconder das crianças esse facto, as rugas no seu rosto marcadas pelo cansaço de uma vida vivida sem algumas respostas evidenciavam esse lado mais sombrio. Amanda, apesar de não lhe ter herdado esse lado mais sombrio, era pessoa de esconder a sua própria dor. Não que deixasse essa dor guiar-lhe o dia, mas não conseguia evitar que a mesma lhe moldasse a maneira de ser. Amanda conseguia ser alegre e bem disposta e o seu sorriso doce e luminoso. No entanto, por vezes, fechava-se em si sem razão aparente e falava pouco, se pouco falassem com ela. Parecia resumir num momento toda a dor com que cresceu. E calava-se, à espera que passasse. Nunca fora de se queixar, muito menos de chorar. Odiava que tivessem pena dela e possuía um orgulho cego, que a própria sabia muitas vezes ser-lhe prejudicial. Um dia houve que Amanda estava na cozinha a cortar cebola e os seus olhos lacrimejavam em ardor. Quando o seu irmão entrou e a viu, perguntou-lhe preocupadamente o que se passava. Prontamente se virou e mostrando o que tinha na mão atirou:
        - Achas que estou a chorar?! Estou a cortar cebola. E é para o teu jantar, por isso, se queres comer, é melhor que te cales.
O irmão, surpreso, levantou as palmas da mão e disse-lhe, em jeito de desculpa, que não percebera a situação. E acrescentou, 
        - De qualquer maneira, se queres tanto que as pessoas não achem que choras enquanto cortas cebola, põe-na no frigorífico e verás que a cebola fria não te faz chorar. 
E assim foi. Amanda, desde então, coloca a cebola no frigorífico.
        Amanda é hoje uma mulher casada, com quatro filhos, um cão e uma casa grande e bonita nos subúrbios da cidade, daquelas casas que vemos nos filmes americanos, com o carro à porta, o jardim em redor e a chaminé a fumegar. Ao contrário da infância que tivera, onde nunca lhe faltara pão, mas a manteiga era incerta, Amanda vivia hoje uma boa vida, abastada, com um marido trabalhador, que a amava e que lhe dera os filhos que sempre quisera. Era uma mãe dedicada, empenhada e exemplar. Era carinhosa com os filhos, embora fosse capaz de deixar que o seu orgulho a influenciasse quando os miúdos tinham atitudes que não gostava. Ao contrário do marido que não deixava os filhos irem para a cama zangados com o pai, fosse de quem fosse a culpa, Amanda ainda tinha dificuldades em fazer esse gesto. Preferia deixar que o tempo fizesse as pazes por ela. Eram diferenças subtis entre um e outro, porque no dia a seguir tudo estava como dantes. Amanda acordava, olhava para as crianças com um olhar de reprimenda, para logo em seguida lhes dar um beijo e lhes entregar as mochilas para a escola. As crianças sabiam que era assim com a mãe e que era assim com o pai. Gostavam dos dois igual. No entanto, estranhavam a frieza daquela em algumas situações. Enquanto que o pai era um romântico, a mãe era mais passiva. As crianças estranharam a cara da mãe, por trás dos grandes óculos escuros, de cor preta, que lhe tapavam a expressão, no velório da sua tia. Por maior que o adereço seja, por expressão que tape, não escondem uns óculos um rosto que carpe. Os miúdos choravam por serem miúdos, o pai emocionava-se por eles, e Amanda, triste, mantinha como sempre a dor em si, não chorando, nem mostrando.
        A vida na casa ia-se adaptando ao passar da adolescência. Bolas, legos e carrinhos, foram sendo substituídos por livros, camisolas e mesadas. Os miúdos cresceram, as namoradas vieram. O mais velho entrou para a faculdade. Era bom aluno. Tão rápido, o primogénito, na faculdade - Amanda pensava à noite antes de dormir. O ano passou. E com ele, outro. Certo dia o rapaz diz aos pais que quer ir estudar para fora. Quer ir em Erasmus, para o Chile. Os pais não percebem porquê o Chile e porquê tão longe. A verdade é que, hoje, o mesmo mundo que ontem era grande e perigoso, deixou de ser grande. E a vida de um rapaz de vinte anos há muito que não pertence aos pais. Resta rezar para que o trabalho até aí feito tenha sido o melhor possível. E rezar para que nesses vinte anos, volvidos num abrir e fechar de olhos, as orientações dos pais sejam suficientes para que o rapaz, sozinho, possa enfrentar o mundo.
      E assim foi. O miúdo vai para o Chile. Os preparativos começam. Amanda ajuda-o com os papéis, compra-lhe roupa quente, prepara-lhe os remédios para levar por um ano, ajuda-o a encontrar uma casa para ficar. Chegado o dia, ajuda-o a fazer a mala, separa-lhe o dinheiro pelas várias bagagens, não vá ele perder alguma delas e ficar sem dinheiro algum, dá-lhe o passaporte, entrega-lhe um saquinho com mais do que comida suficiente para ir e voltar. Lá dentro, as sanduíches aparadas, como o seu filho gosta. Quando o rapaz vai a sair de casa, com o pai apressado para não perderem o avião, Amanda despede-se do filho com um beijo e pergunta-lhe se não se esqueceu de nada. Não vai entregá-lo ao aeroporto porque os outros miúdos tarda nada chegam e é preciso orientar os banhos, fazer o jantar. Amanda acena uma última vez antes do carro arrancar. Entra na casa vazia, silenciosa e apanha os brinquedos dos mais novos que ficaram espalhados pelo chão. Pergunta-se a si mesma se é assim tão difícil arrumarem as coisas quando acabam de brincar. Termina de pôr o quarto dos brinquedos em ordem e são seis da tarde. Amanda pensa no que vai fazer para o jantar. Segunda foi bolonhesa, ontem foi peixe, hoje pode ser arroz com almôndegas. Os miúdos gostam. Vai à cozinha e tira as almôndegas para descongelar. Em seguida, prepara o refogado para o arroz. Pega no alho e pousa-o na tábua de cortar. Corta-o bem fininho e atira-o para o tacho. Abre o frigorífico e tira a cebola. Amanda corta cebola com a mestria de uma dona de casa. 
        Lá fora, de mochila às costas, atravessando o jardim, o segundo filho mais novo chega da escola. Quando passa pela janela da cozinha, pára a ver a mãe, dentro de casa, a cortar cebola e a chorar compulsivamente.
   

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Saudade

Intróito: Este não é um texto bacoco de exaltação dos tugas. É só um texto de exaltação dos tugas. Porque o sou e porque tenho orgulho nisso. Bem sei que todos os povos são diferentes. Nem melhores, nem piores. Mas eu gosto dessas diferenças e gosto, sobretudo, das  idiossincrasias (ou seja, aquilo que nós temos e mais ninguém tem - porque todos os povos têm coisas que mais ninguém tem) que nos calharam em sorte. Assim, este texto é uma pequena e humilde ode às nossas idiossincrasias enquanto tugas.

           
        Há outros países com outras histórias para contar. Os EUA proclamam-se a maior das nações, em França reside a capital do amor, Itália alimenta o mundo com a sua cozinha, os ingleses falam a sua língua onde quiserem, os chineses existem à ordem de um para cada seis dos restantes terráqueos, e por aí em diante. Nós, os tugas, não queremos saber. Somos simples. Tanto formamos o maior império do mundo, como nos regozijamos com o recorde mundial de maior feijoada colectiva. Somos assim, sonhadores e ambiciosos, claro, mas sempre terra-a-terra, olhos nos olhos, sinceros de alma.
        Ontem, o maior do mundo - depois de ter estado noventa minutos ocupado a ser o melhor do mundo, no desporto mais jogado do mundo, onde marcou três golos debaixo da mira dos olhos do mundo -, do alto duma mística aura que paira sobre os seus ombros e de toda a veneração que conseguiu obter e merecer, do mundo, reduzindo-se à sua primária condição de mais um de nós, mais um dos tugas, consegue soltar um simples: “Ah, é verdade. Oh Onofre!!, pede a bola de jogo!”, após o jornalista tuga o alertar para o facto de ele se ter esquecido da bola com que marcou os três golos. Não fosse isto já pérola suficiente para nos encher as medidas, passado um minuto passa o cabrão do Onofre* e manda aquela bojarda em voz off: “Éjomaior do mundo, caralho!!”. O maior do mundo ri-se, com ar comprometido. Sim, sou o maior do mundo, mas este Onofre é fodido.
        Somos assim, gajos fixes. E um tuga é sempre um tuga e entre tugas não há cá merdas, é “eu cá, tu lá”. E é assim que tem de ser.
      





*não sei se era, de facto, o cabrão do Onofre quem gritou “Éjomaior do mundo, caralho!!”, mas, ainda que fosse outra pessoa, o texto manteria o mesmo sentido e, além disso, a história tem mais piada assim. Afinal, quem diz apenas a verdade, não merece ser escutado.

Parabéns Xando!


Tenho que treinar. Eu sei...

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Incognito vs. Martin

Dando sequência à série "Coisas-Sempre-Relacionadas-Com-Desporto-Nos-EUA-A-Que-Mais-Ninguém-Liga-Sem-Ser-Eu" hoje trago mais um brilhante texto sobre uma polémica que nasceu há uns dias na NFL, mais precisamente no balneário do Miami Dolphins. Resumindo e contextualizando: o jogador A (Jonathan Martin), novato na linha ofensiva dos Dolphins, farto de se sentir discriminado, gozado, posto de parte - numa palavra: bullyed -  pelos restantes membros da linha ofensiva da equipa, decidiu gritar "basta!" e pôs-se ao fresco, internando-se voluntariamente num hospital. Logo vieram a público um rol de sms que o jogador B (Richie Incognito) enviava ao jogador A, ameaçando-o e intimidando-o, apenas porque sim e, diz-se, porque os treinadores achavam Martin "soft" e, como tal, precisava de ser "enrijecido". O debate assumiu uma dimensão nacional e logo deambulou para o bullying e para as obrigações das equipas e da NFL em evitar que este tipo de situações ocorram num meio (o do futebol americano) em que a taxa de suicídio é alarmantemente alta.

Mas o que esta situação tem de especial, é que não estamos a falar do gordo com borbulhas da escola que é gozado pelos colegas, mas sim de homens de 100 quilos para cima, que fazem da agressividade e da intimidação o seu sustento. Talvez por isso, por estarmos num balneário de futebol americano, e não num parque de baloiços, a análise que os meios de comunicação, os atletas, treinadores, etc, fizeram inverteu os papéis que seriam normalmente atribuídos e fez do agressor a vítima e do agredido (quase) o agressor. Incognito deu uma entrevista, meticulosamente preparada, em que vestiu a sua melhor camisa aos quadrados (com as mangas para baixo, não fossem os braços cobertos de tatuagens dar uma ideia errada do santo que ali estava), apertou os botões todos até ao penúltimo, penteou o cabelo para o lado e, com uma candura e sensibilidade que nem o papa Francisco conseguiria igualar, lá disse que se alguma vez disse a Martin que ia matar a mãe dele, ou que o ia matar a ele, ou se o ignorou ou maltratou foi porque sempre foi o seu melhor amigo e nunca percebeu que lhe podia estar a fazer mal. Óbvio.


Está aqui um trabalho de relações públicas absolutamente flawless, justiça lhe seja feita. Apetece apanhar um avião até Miami, pegar em Incognito ao colo e embalá-lo até adormecer nos nossos braços. Felizmente ainda há cabeças que funcionam direito e, felizmente também, essas cabeças não só funcionam direito como têm a capacidade para pôr em palavras aquilo que as pessoas normais (onde me tento incluir sempre que posso) pensam. É o caso de Brian Phillips que escreve para o Grantland e que escreveu este texto que, no fundo, e depois de tanto intróito, era o que queria mostrar. Fica um excerto e o texto:

Because this — this idea that Jonathan Martin is a weakling for seeking emotional help — this is some room-temperature faux-macho alpha-pansy nonsense, and I am here to beat it bloody and leave it on the ground. Every writer who's spreading this around, directly or by implication; every player who's reaction-bragging about his own phenomenal hardness; every pundit in a square suit who's braying about the unwritten code of the locker room — every one of these guys should be ashamed of himself, and that's it, and it's not a complicated story.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Mike Rice


Há 7 meses atrás a ESPN pôs no ar estas imagens de Mike Rice num treino da sua equipa de basketball da Universidade de Rutgers e o mundo desportivo norte-americano indignou-se. Percebe-se facilmente porquê depois de se ver o vídeo. Esta semana o The New York Times faz uma peça tão longa quanto bem feita sobre a personagem Mike Rice. É uma peça exemplarmente feita, brilhantemente escrita, sobre o caminho até à redenção de uma pessoa que caiu em desgraça mas que só sabe fazer uma coisa na vida: treinar basketball. Vale a pena ler.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

João Vítor vai à guerra

João Vítor puxa o último bafo do seu cigarro antes de o atirar para o chão e pisar sobre o mesmo. No reflexo dos seus olhos vê-se um gavião a passar a asa por cima dela. A sua rola. A ave da sua vida. Naquele momento, ele sabe que a vida mudou. A angústia percorre-lhe o corpo mas não lhe muda o semblante. Enquanto a vê a ir, no que parece ser um caminhar feliz, sente a alma a arder. Pensa por um segundo no que poderia ter feito diferente. Nada, conclui. É um erro pensar que poderíamos ter feito algo diferente. O passado não se muda. É impossível mudá-lo. De que vale, então, pensar no que poderíamos ter feito? Se não o fizemos por alguma razão foi. João Vítor vê a ponta das penas da sua rola acabarem de dobrar a esquina do quarteirão e promete a si mesmo que aqueles pensamentos acabaram ali, com aquele cigarro que pisou. Arrependimentos são para os merdosos. As coisas acontecem, há que lidar com elas. Dá meia volta, acende outro cigarro e a sua mota leva-o para longe. Doze whiskeys depois, encostado ao bar, João Vítor atrai ave após ave, magnetizadas pelo seu charme de pinguim vivido. Olhar indiferente, palavras acutilantes, mistério, confiança, tudo em João Vítor é natural, mas incrivelmente sedutor. Eles temem-no, elas não lhe resistem. Nessa noite, João Vítor já só pensa em tudo o que vai fazer com a milhafre que sacou. Ele sabe que a perda de um amor se cura com a conquista de outro. Rapidamente estará de novo no seu melhor. Leva-a para casa. A milhafre não o desaponta. João Vítor tem uma noite como há muito não tinha. E o melhor é que ela não pode ficar. João Vítor leva-a até ao elevador. Enquanto ouve o descer das máquinas, sente-se bem por estar a fazer o certo para esquecer o que já lá vai. Vai ao quarto buscar um cigarro, dirige-se à varanda e vê a ave entrar no táxi. Sente-se aliviado por poder dormir sozinho. Fuma. As lágrimas caem-lhe umas a seguir às outras.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Discurso de perdão do Diabo para o Mundo

Fui a dor dos que choram. O vermelho dos que sangram.

Fui a vaidade dos que se admiram. A inveja dos que cobiçam.

Fui intolerância. Fui egoísmo. Fui tristeza.

Fui a razão por trás da dor do mundo. Fui a guerra, fui o cancro, fui o azar.

Fui tudo isso e muito menos.

Não fui aceitação nem compreensão. Generosidade nem dedicação.

Nunca fui perdão.

Encontrei no divino a razão da minha existência. Na sua missão a minha contra-missão. Porque um mundo que desconhece o mal é um mundo que não sabe o que é o bem. Um mundo onde os homens apenas são capazes de amar, onde a inveja ou a crueldade são apenas letras postas de seguida de maneira aleatória, é um local sem luz. Ela só existe quando a escuridão não se lhe sobrepõe, da mesma forma que apenas há coragem se o medo e a cobardia não lhe levarem a melhor.

Sem rejeição a aceitação não existe. Sem se conhecer o insulto não se sabe o que é o respeito. Sem o homem mau, o homem bom é apenas homem. Semear a escuridão foi a minha função, e talvez o mundo visse a luz. Incutir o desprezo, a traição e a violência foi a minha missão e talvez assim o Homem descobrisse o respeito, a lealdade e a paz.

Descobriu. Não se rendeu.

A minha função está esgotada. A missão usurpada. Fui substituído com o afinco e a competência próprias de quem o faz de forma natural. Inata. Não sou necessário. O homem encarrega-se hoje de dar sentido à ordem em que estão alinhadas as letras que compõem as tantas vezes repetidas guerra. Fome. Fim.

O Homem mata, maltrata, suga. Fá-lo porque sim. Fá-lo porque não. Fá-lo para comer. Para se deslocar. Para viver. Fá-lo porque alguém o fez crer que era a única forma de viver. Eu.

Fui o mal que invade o Homem. Tornei-o no mal que castiga o vosso mundo.


Perdão. Sou Homem.