segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Estrugido

        Amanda era uma mulher forte. Não no sentido físico, mas interior. A sua infância fora marcada pela ausência dos pais, que morreram cedo, num desastre de carro. Fora criada por uma tia, viúva do mesmo desastre e com mais um filho da mesma idade de Amanda, a quem esta passou a chamar de irmão. A sua tia era lutadora e incutia nos miúdos esse espírito, mas nunca conseguira esquecer a angústia da sua sorte e, embora tentasse esconder das crianças esse facto, as rugas no seu rosto marcadas pelo cansaço de uma vida vivida sem algumas respostas evidenciavam esse lado mais sombrio. Amanda, apesar de não lhe ter herdado esse lado mais sombrio, era pessoa de esconder a sua própria dor. Não que deixasse essa dor guiar-lhe o dia, mas não conseguia evitar que a mesma lhe moldasse a maneira de ser. Amanda conseguia ser alegre e bem disposta e o seu sorriso doce e luminoso. No entanto, por vezes, fechava-se em si sem razão aparente e falava pouco, se pouco falassem com ela. Parecia resumir num momento toda a dor com que cresceu. E calava-se, à espera que passasse. Nunca fora de se queixar, muito menos de chorar. Odiava que tivessem pena dela e possuía um orgulho cego, que a própria sabia muitas vezes ser-lhe prejudicial. Um dia houve que Amanda estava na cozinha a cortar cebola e os seus olhos lacrimejavam em ardor. Quando o seu irmão entrou e a viu, perguntou-lhe preocupadamente o que se passava. Prontamente se virou e mostrando o que tinha na mão atirou:
        - Achas que estou a chorar?! Estou a cortar cebola. E é para o teu jantar, por isso, se queres comer, é melhor que te cales.
O irmão, surpreso, levantou as palmas da mão e disse-lhe, em jeito de desculpa, que não percebera a situação. E acrescentou, 
        - De qualquer maneira, se queres tanto que as pessoas não achem que choras enquanto cortas cebola, põe-na no frigorífico e verás que a cebola fria não te faz chorar. 
E assim foi. Amanda, desde então, coloca a cebola no frigorífico.
        Amanda é hoje uma mulher casada, com quatro filhos, um cão e uma casa grande e bonita nos subúrbios da cidade, daquelas casas que vemos nos filmes americanos, com o carro à porta, o jardim em redor e a chaminé a fumegar. Ao contrário da infância que tivera, onde nunca lhe faltara pão, mas a manteiga era incerta, Amanda vivia hoje uma boa vida, abastada, com um marido trabalhador, que a amava e que lhe dera os filhos que sempre quisera. Era uma mãe dedicada, empenhada e exemplar. Era carinhosa com os filhos, embora fosse capaz de deixar que o seu orgulho a influenciasse quando os miúdos tinham atitudes que não gostava. Ao contrário do marido que não deixava os filhos irem para a cama zangados com o pai, fosse de quem fosse a culpa, Amanda ainda tinha dificuldades em fazer esse gesto. Preferia deixar que o tempo fizesse as pazes por ela. Eram diferenças subtis entre um e outro, porque no dia a seguir tudo estava como dantes. Amanda acordava, olhava para as crianças com um olhar de reprimenda, para logo em seguida lhes dar um beijo e lhes entregar as mochilas para a escola. As crianças sabiam que era assim com a mãe e que era assim com o pai. Gostavam dos dois igual. No entanto, estranhavam a frieza daquela em algumas situações. Enquanto que o pai era um romântico, a mãe era mais passiva. As crianças estranharam a cara da mãe, por trás dos grandes óculos escuros, de cor preta, que lhe tapavam a expressão, no velório da sua tia. Por maior que o adereço seja, por expressão que tape, não escondem uns óculos um rosto que carpe. Os miúdos choravam por serem miúdos, o pai emocionava-se por eles, e Amanda, triste, mantinha como sempre a dor em si, não chorando, nem mostrando.
        A vida na casa ia-se adaptando ao passar da adolescência. Bolas, legos e carrinhos, foram sendo substituídos por livros, camisolas e mesadas. Os miúdos cresceram, as namoradas vieram. O mais velho entrou para a faculdade. Era bom aluno. Tão rápido, o primogénito, na faculdade - Amanda pensava à noite antes de dormir. O ano passou. E com ele, outro. Certo dia o rapaz diz aos pais que quer ir estudar para fora. Quer ir em Erasmus, para o Chile. Os pais não percebem porquê o Chile e porquê tão longe. A verdade é que, hoje, o mesmo mundo que ontem era grande e perigoso, deixou de ser grande. E a vida de um rapaz de vinte anos há muito que não pertence aos pais. Resta rezar para que o trabalho até aí feito tenha sido o melhor possível. E rezar para que nesses vinte anos, volvidos num abrir e fechar de olhos, as orientações dos pais sejam suficientes para que o rapaz, sozinho, possa enfrentar o mundo.
      E assim foi. O miúdo vai para o Chile. Os preparativos começam. Amanda ajuda-o com os papéis, compra-lhe roupa quente, prepara-lhe os remédios para levar por um ano, ajuda-o a encontrar uma casa para ficar. Chegado o dia, ajuda-o a fazer a mala, separa-lhe o dinheiro pelas várias bagagens, não vá ele perder alguma delas e ficar sem dinheiro algum, dá-lhe o passaporte, entrega-lhe um saquinho com mais do que comida suficiente para ir e voltar. Lá dentro, as sanduíches aparadas, como o seu filho gosta. Quando o rapaz vai a sair de casa, com o pai apressado para não perderem o avião, Amanda despede-se do filho com um beijo e pergunta-lhe se não se esqueceu de nada. Não vai entregá-lo ao aeroporto porque os outros miúdos tarda nada chegam e é preciso orientar os banhos, fazer o jantar. Amanda acena uma última vez antes do carro arrancar. Entra na casa vazia, silenciosa e apanha os brinquedos dos mais novos que ficaram espalhados pelo chão. Pergunta-se a si mesma se é assim tão difícil arrumarem as coisas quando acabam de brincar. Termina de pôr o quarto dos brinquedos em ordem e são seis da tarde. Amanda pensa no que vai fazer para o jantar. Segunda foi bolonhesa, ontem foi peixe, hoje pode ser arroz com almôndegas. Os miúdos gostam. Vai à cozinha e tira as almôndegas para descongelar. Em seguida, prepara o refogado para o arroz. Pega no alho e pousa-o na tábua de cortar. Corta-o bem fininho e atira-o para o tacho. Abre o frigorífico e tira a cebola. Amanda corta cebola com a mestria de uma dona de casa. 
        Lá fora, de mochila às costas, atravessando o jardim, o segundo filho mais novo chega da escola. Quando passa pela janela da cozinha, pára a ver a mãe, dentro de casa, a cortar cebola e a chorar compulsivamente.
   

3 comentários:

Xadão disse...

Obg. Depois queria trocar umas impressões contigo. Sobre isto e outros textos.

Por falar nisso, marca lá um poker!

Abraço!

Morales disse...

"Trocar impressões" pressupõe que eu tenho impressões para a troca. Gosto dessa forma optimista como olhas para mim Xando. lol

Quanto ao poker...vai-te foder! Eu sei que raspar as calosidade cutâneas da avó ocupa parte considerável de uma sexta ou sábado à noite de todos nós (quem nunca passou uma noite de lima numa mão e o pé da avó na outra que mande a primeira pedra!!) mas fds, já são vezes demais que os pokers ficam na gaveta por desculpas desse calibre.

Ou seja: marca tu, que eu só não posso se não me deixarem.

Abraço.

Xadão disse...

Justo, justo. Aceito o enxovalho. Mas fica sabendo que vou marcar para tua casa.

Vou te mandar um mail!

Abraço