quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Talvez

“Inha” era uma dúvida em conflito consigo mesma. Fugir rumo ao esclarecimento era algo que muitas outras dúvidas já tinham tentado anteriormente sem qualquer sucesso. Sozinha, naquela solitária, naquela prisão, naquela ilha, Inha só pensava em atravessar aquele rio e chegar ao outro lado da margem onde poderia ser livre pela primeira vez.

Chamavam-lhe Inha devido à sua pequena dimensão. Inha era filha de uma dúvida que nunca se tinha esclarecido e, tal como todas as descendentes de dúvidas por esclarecer, Inha nascera na prisão onde todas as dúvidas do mundo foram condenadas a permanecer para todo o sempre. O mundo era governado por certezas. Umas eram filhas de outras certezas e outras eram dúvidas que acabaram por se esclarecer. O mundo estava, portanto, divido entre as certezas e as dúvidas. Dentro de cada classe havia vários tipos de certezas e de dúvidas. Nas certezas, muitas variações havia, como as constatações ou os factos e nas dúvidas era comum encontrarem-se questões ou enigmas. Todas eram diferentes, mas todas eram certezas ou dúvidas. Como as raças de cães, são muitas e com aspectos muitos diferentes, mas resultam todas no mesmo animal.

Inha fora encarcerada na prisão conhecida ao mundo como o “Cânone”. O Cânone fora construída numa pequena ilha fluvial, nos subúrbios da cidade grande, idealizada pelas certezas para acabarem com as dúvidas no mundo. O objectivo era isolar todas as dúvidas. O mundo tem medo das dúvidas e se não as pode esclarecer, prefere tentar esquecê-las, renegando-as e ostracizando-as nas paredes do esquecimento.

Apesar do seu aspecto frágil, Inha era um osso duro de roer. Pequena e esguia, Inha era também seca e tesa. Os seus pulsos finos escondiam duros punhos prontos a acertar quem lhe aparecesse no caminho. Determinada a procurar o seu esclarecimento, Inha sabia que teria de fazer tudo para sair daquela prisão. Abstraída do que seria o mundo lá fora, fora-lhe dito que o esclarecimento era um processo libertador onde cada dúvida poderia encontrar a sua resposta e, como que por metamorfose, se transformaria em certeza, podendo, finalmente, viver em paz com a sua consciência. Paz na consciência era o bem mais precioso do mundo. Inha só teria de encontrar a sua resposta.

Fora-lhe dito que a melhor maneira de fugir daquela prisão era através da ala das solitárias. Há duas semanas que Inha se encontrava na solitária. Propositadamente, Inha provocara uma violenta discussão na cantina e, como se pode imaginar, uma discussão onde não há respostas só acaba de uma maneira, com força física. Os guardas, ou “Dogmas” como as dúvidas lhes chamavam, interromperam a confusão, encontraram os culpados e remeteram-nos à solitária. Para todas as dúvidas condenadas ao isolamento, isso era um castigo duro, muito duro. Para Inha, tal poderia significar o caminho para a liberdade.

Após duas semanas a escavar, Inha decidira partir nessa noite, quando as luzes se fechassem e fosse feita a última contagem. Teria que entrar pelo buraco que escavara, mas deixar para trás a sua própria silhueta na cama. Enrolou vários lençóis e esforçou-se o máximo que pôde para disfarçar a ausência do seu corpo. Entrou no buraco e rastejou mais de cem metros pelo tubo de ventilação. Quando finalmente vislumbrou a luz da noite sorriu. Podia cheirar a liberdade. Mas sabia que o mais difícil ainda estava para vir. Não era o descampado que teria de percorrer sob o olhar atento dos focos dos guardas, a vedação que teria de saltar ou o arame farpado que teria de evitar que a preocupavam. O rio, aquele grosso fio de água, o derradeiro obstáculo, é que lhe ocupava as preocupações. Quando chegou à beira da água e viu a outra margem não pôde deixar de ponderar, ainda que por um segundo, se não seria melhor voltar para trás e confinar-se àquela que, afinal, sempre fora a sua realidade. Decidiu que não. Embora nunca uma outra dúvida tivesse conseguido atravessar o rio, Inha estava determinada a procurar a sua resposta ou a morrer na tentativa. O rio tinha correntes fortes, troncos, pedras e pontos de interrogação que facilmente poderiam arrastá-la até ao fundo. E Inha não sabia nadar. Nunca tinha precisado. Na verdade, nunca tivera hipótese de o experimentar sequer. O seu plano consistia em agarrar-se à corda que conseguira trazer consigo, atando-a à cintura e a um poste do lado da margem da prisão e dando folga à medida que avançasse. Não sabia nadar mas sabia esbracejar e com um pouco de sorte e muitos goles de água à mistura, podia ser que conseguisse. Atirou-se. Lutou o mais que pôde. Agarrou-se a um tronco, evitou as garras de um ponto de interrogação, avançou mais um pouco e mesmo quando estava quase a chegar à outra margem a corda rompe-se. O percurso torna-se mais difícil, não porque a corda lhe desse alguma vantagem física, mas porque lhe dava o descanso de uma nova tentativa. Inha era neste momento um trapezista sem rede. Ansiosa, dá um passo em falso e a corrente leva-a para não mais a trazer. Inha morre na busca de uma resposta. Como tantas outras dúvidas.

Moral da história:

Não há margem para dúvidas.

4 comentários:

Morales disse...

Muito bom!!!!

Que epopeia! Só faltou à Inha que alguem tirasse uma dúvida durante a travessia...lol

Xadão disse...

Tipo pescar à (l)inha?

Morales disse...

lol Touché!

Este teu escrito deu-me vontade de revisitar umas coisas que escrevi noutros tempos, noutros sítios. Vou transladá-los (já que estavam mortos e enterrados) para aqui e aproveito para lhes dar um toque ou outro.

Pode ser que puxem pelo omniausente Manucho... NOT!!!

Xadão disse...

Faz isso!

Quanto à Nucha, já lhe perdi a esperança.

Parece um ministro com tanta promessa incumprida.