segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Hospitalidades

Outro dia fui vítima de um pequeno infortúnio, fiz um corte no sobrolho e precisei de levar uns pontos. Até aqui, tudo bem. Acreditem ou não, o pior de abrir a cabeça não é abrir a cabeça, é ter de fechá-la. Dirigi-me ao hospital mais próximo. Próximo e público. Público e, necessariamente, burocrático e lento. Entro e viro à direita para o guichet. Identifico-me e uma senhora, de voz bovina, manda-me para a Sala de Tratamentos (nome conclusivo num estabelecimento hospitalar, por acaso). Chego à sala e aqui sou tratado como animal por inspeccionar. Limpam-me, vacinam-me - pelo sim, pelo não - e ferram-me a verde de acordo com a Triagem de Manchester. Mandam-me para o Gabinete 7. “É desta!”, penso eu. “Ainda não meu caro!”, pensam eles. Antes, chego à Sala dos Triados. Aqui, meus amigos, se já pensava ter visto o suficiente nos corredores que perfazem o caminho até à vala comum onde agora me encontro, rapidamente me desengano. Um ar pesado, perfumado a suor e a sala carregada de pessoas. Ciganos enfermos, atrasados mentais – não me refiro aos ciganos -, senhoras balanceando sentadas uma ritmada lamúria em tom baixo e grave. Aqui, neste cenário de guerra perdida, é impossível não pensarmos nas coisas insignificantes com que por vezes nos queixamos e deixarmos de nos sentir pequeninos. Enfim, espero quarenta minutos pelo meu nome. Ouvido o doce epíteto, dirijo-me ao Gabinete 7. Penso quem será o médico que me vai coser. Entro e deparo-me com um gajo - não era um homem, atenção, era um gajo - de bata azul aberta, por dentro uma t-shirt médica branca e gasta de gola descaída, deixando à mostra a deslavada penugem da peitaça. Em frente a um computador este indivíduo mascava uma displicente pastilha. Incapaz de accionar o elevador ocular para me receber, o gajo balbucia duas perguntas, no que entendi serem-me dirigidas, visto não haver mais ninguém no Gabinete. Uma delas consistiu num quase inaudível “Tão..?”, coadjuvado por um ligeiro e desprezado levantar de pescoço, naquilo que penso ser uma analogia ao célebre “what’s up” americano. Digo-lhe em poucas palavras o que se passou. Interrompendo-me, pergunta-me também se desmaiei e, sem esperar pela resposta, continua o seu automático pulsar de teclas para depois me enviar para a Pequena Cirurgia. Chegado à quarta etapa deparo-me com uma outra Sala de Triados, diferente da primeira, mas igualmente deprimente. Pessoas, várias, acamadas e arrumadas a um grande canto esperam pela sua vez. Velhos queimados, miúdas espancadas e um GNR, com a cabeça aberta, em sangue, despojado da dignidade que a farda lhe deveria trazer, sozinho e à espera como os outros. Depois de uma longa espera sou atendido. Uma médica engraçada, nova e novata atende-me. Costura-me o sobrolho seguindo as indicações verbais do chefe e acaba o serviço, tal e qual qualquer pessoa chega ao destino orientada pelo GPS. Vou-me finalmente embora. Apesar do que acabara de assistir nas últimas duas horas, não saio deprimido, mas antes estranhamente tranquilo. Ali tive um pedaço de vida vivida. Aquele é o mundo real, um mundo onde a desgraça e a miséria existem e são reais. Quase palpáveis, como o ar daquelas salas de espera. Por vezes, nada como uma chapada de realidade para agradecermos aquilo que temos. Que é muito.

2 comentários:

Morales disse...

Levaste uma bela lição Xando. A minha personagem preferida foi o "gajo" (que não era homem). Gostei dele. Acho que te tratou exactamente como te devia tratar. Com indiferença acompanhada do ritmo do mascanço e do teclanço. lol

Xadão disse...

Lol, arrisco-me mm a dizer que o gajo não me viu sequer.

Estar ali eu, a princesa Diana ou um papagaio albino a esvair-se em sangue era a mesma merda.